Salvador Schavelzon (São Paulo)
Às cinco e meia da manhã quando chegaram os voluntários da Corte Nacional eleitoral já havia algumas pessoas esperando para votar. Às oito a fila já tinha mais de 500 metros. Alguns falam em português com seus filhos, outros em espanhol mas usavam camisetas do Corinthians, São Paulo e Palmeiras. O responsável da eleição, Jorge González, que vive há 30 anos em São Paulo, foi radialista e presidiu no passado a associação de residentes bolivianos, classificou-a como o ato mais importante da história da democracia boliviana no exterior. Contou que, desde julho, organizavam a eleição e que a votação fortalece o contato dos migrantes com a Bolívia, o que percebe como uma necessidade.
O resultado em São Paulo foi uma vitória para o binômio Evo Morales-García Linera pelos 95,67% dos votos, alcançando uma porcentagem só comparável a de comunidades rurais do altiplano, que têm menos votantes.
Aqui votaram 14.293 pessoas, algumas pela primeira vez na vida, dos 180 mil que se calcula que vivem na cidade - 18.600 se cadastraram até o dia 15 de outubro (ver blog sobre o processo de registro biométrico em São Pablo: www.tuhuellatuvoto.blogspot.com). Alguns explicaram que votavam para evitar as práticas de extorsão a que a polícia os submete se não possuem algum comprovante de votação, em Porto Suarez. Uma brasileira se manifestou surpreendida com as filas, disse que nunca um brasileiro votaria em outro país se não fosse obrigado.
Em uma pesquisa de observação do dia de votação que realizamos em uma investigação para distintas universidades, havia algumas constantes. A maioria respondia ao perfil de migrante do altiplano ou dos vales, trabalhador de costura e confecção de roupas nos ateliês dos bairros do Brás e Bom Retiro em São Paulo, onde também estavam os cinco pontos de votação. Na fila se misturavam donos dos ateliês e trabalhadores de 17 horas por dia de empreitada, quase todos mandavam dinheiro a suas famílias na Bolívia e alguns inclusive tinham ali uma taxa trabalhando para eles. Havia também alguns jovens de Santa Cruz, da zona sul de La Paz ou da Llajta que haviam vindo para fazer uma especialização em medicina e que votariam em Manfred ou Doria Medina, candidatos da direita opositora de Evo. Mas nas 25 mesas do Memorial da América Latina, principal recinto de votação, o resultado era sempre mais ou menos o mesmo: 180 votos para o MAS; seis para PPB e dois ou três para GENTE, MUSPA ou Unidad Nacional.
Houve campanha em São Paulo, pela rádio da comunidade boliviana, na feira de kantuta, onde todos os domingos se comem autênticos api, picante de /pollo/ e /chicharrón/ ou se compra cartões telefônicos para fazer chamadas para a Bolívia. Para a campanha do MAS viajaram a ministra Patricia Ballivián e o deputado Juan Valdivia, porém o mais eficiente foi a voz no telefone dos familiares, e mais forte ainda, o sentimento de votar em um presidente “/que es como yo/”, segundo diziam os votantes. Para um joalheiro cochabambino as pessoas votavam em Evo Morales porque era o primeiro governo que havia se lembrado dos bolivianos no estrangeiro. Agora com o voto, antes com uma campanha de entrega de cédula de identidade.
Enquanto resolvia a situação de umas 120 pessoas “flutuantes” que não figuravam no padrão por uma falha no sistema, Eduardo Leaño, juiz da Corte Nacional Eleitoral a cargo da eleição em São Paulo, destacou a importância de que a votação não seja organizada pelo consulado, como na maioria dos países da região. Comentou que estava alcançando o máximo de porcentagem de votantes estrangeiros da América Latina, ainda quando nem sequer se alcançou 6% do total, que era o limite imposto na lei eleitoral transitória. Também observava que esta eleição era particular também porque, no geral, o voto é contrário ao partido que está no governo. Isso ocorreu na votação nos Estados Unidos, mas Espanha, Argentina e Brasil impuseram o oficialismo.
Os dados falam que, também em São Paulo, já não se trata somente de votar contra os candidatos dos velhos partidos, ou pelo Evo /cocalero /e deputado expulso do congresso da primeira metade da década. Se trata agora de ratificar um governo no poder, seus bons políticos, as nacionalizações, a nova constituição. Uma resposta à pesquisa que fala de mudança e chamava a atenção era a de vários votantes que se definiam politicamente de direita, mas que pensavam que a situação na Bolívia havia melhorado desde que Evo é presidente e votaram nele sem dúvida. Pensando em voltar e no bem-estar de seus familiares, os bolivianos paulistanos expressavam aqui o que também se via nos resultados gerais da Bolívia: um projeto político que se consolida com um caráter nacional cada vez mais inclusivo, sem alternativas consistentes e com a oposição conservadora racista cada vez menos convincente e reduzida.
Enquanto percorria a fila de votantes, alguém me chamou comentando “aí vai um que vai votar em Costas”, pensando que por meu aspecto de descendente europeu seria de Santa Cruz. Me fez lembrar que os mesmos haviam gritado para mim perto do povo Qhara Qhara quando passei ao lado dos comunários que bloqueavam as estradas que unem Oruro e Porotsí, tempos atrás. Os bolivianos que agora puderam votar e esperaram horas nas filas eram o povo boliviano das minas que enriqueceram aos barões do estanho, ou que foram relocados ao chapare (região boliviana no altiplano), os mesmos que em outra época foram lutar na Guerra do Chaco e que, mais recentemente, se mobilizaram pela recuperação dos recursos naturais ou para pedir a convocatória ao referendo da nova constituição. Até aqui haviam migrado na “época neoliberal” da qual sempre fala Evo Morales, e não é difícil entender porque se identificam com ele e o sentem seu presidente.
Fonte: Brasil de Fato
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